19 agosto, 2007

Pesadelo digital

A notícia já tem um par de dias, mas não a vi reproduzida por cá em nenhum lado. O Google encerrou, no dia 15 de Agosto, o seu serviço de venda e aluguer de filmes. Desde essa data, todos os vídeos comprados nos EUA deixaram de funcionar. A empresa promete ressarcir, com 2 dólares, todos os tolos que compraram filmes através de uma plataforma que só os permitia ver num computador, com um programa especialmente criado para o efeito. Descontinuado o software, os vídeos passaram a ser zeros e uns sem nenhum sentido a encher o disco rígido.

É a verdadeira caixa de Pandora, a confirmar os piores receios sobre os incontáveis modelos que limitam o acesso e reprodução dos formatos digitais adquiridos legalmente. As músicas compradas na loja do iTunes não funcionam noutro aparelho que não o iPod, e têm uma qualidade tão baixa que se tornam irreproduzíveis na aparelhagem de qualquer pessoa que consiga distinguir a Britney Spears do Tom Waits. O mesmo acontece nas dezenas de lojas que usam a protecção digital da Microsoft, com a agravante destas músicas nem funcionarem no aparelho construído pela empresa de Bill Gates - que tem um formato proprietário próprio para o Zune. Confuso? Claro. Se qualquer destes formatos for ao ar, e os dois últimos são sérios candidatos, todos os que investiram na aquisição de música digital vêem-se, de um dia para o outro, com uma pilha de lixo informático que não lhes serve absolutamente para nada.

O mesmo sucede com as, por enquanto, tímidas venda digitais de filmes, com a proliferação de formatos proprietários como o agora encerrado pelo Google ou o da Amazon. O primeiro fechou a loja e o segundo tem restrições tão absurdas que chega a comportar-se como um daqueles programas que infectam e tomam conta dos computadores. Não devia ser assim. A transição para suportes digitais (que é inevitável) deveria significar uma maior liberdade e comodidade para o utilizador, não a subordinação aos absurdos caprichos das editoras e distribuidoras que mandam para as urtigas os direitos dos consumidores e assumem práticas comerciais inaceitáveis em qualquer outro modelo de negócio. Alguém imagina o que é que aconteceria se, de um dia para o outro, a Sony dissesse que todos os seus televisores deixavam de funcionar, compensando os seus clientes com 20 ou 30 dólares?

A transição para um modelo em que a aquisição de um produto deixa de significar a sua presença física, não quer dizer que quem o comprou não seja seu dono. Comprar é bem diferente de alugar, ou, pelo menos, costumava ser. A União Europeia, sempre tão atenta aos monopólios comerciais, e a ASAE e PJ que parecem dedicar-se a perseguir os miúdos que partilham música na net, podiam começar a prever estas coisas e a preocupar-se com os direitos dos consumidores nesta época digital. A maioria destas plataformas ainda só funciona nos EUA, mas o futuro passa por aqui e a maioria destes serviços prepara-se para dar o salto do atlântico e aterrar na pacata Europa.

PS: O suplemento Digital de ontem do Público (que não se encontra disponível na net) entrevista um significativo conjunto de artistas nacionais sobre os riscos da pirataria. O resultado não anda muito distinto do que já aqui tinha escrito sobre a indústria mais estúpida do mundo. A maioria dos artistas, mesmo os que consideram justo o encerramento dos sites de transacção de ficheiros digitais, insurge-se claramente contra as práticas comerciais das maiores multinacionais, dizendo que não investem em novos formatos e autores, denunciam as percentagens ridículas das vendas que sobram para os autores ou os custos proibitivos, para a realidade nacional, da maioria dos discos. Só pelo suplemento, vale a pena comprar a edição de ontem do Público.

Os artistas têm razão noutro aspecto: a redução do IVA dos discos. Não há nenhuma justificação para que os filmes e livros beneficiem do IVA reduzido aplicado às actividades culturais e um disco tenha que pagar 21% de imposto.

3 comments:

Eduardo disse...

Boa noite.
Quando se refere àqueles que investiram na aquisição de música digital (2.º parágrafo), penso que pretende dizer "vêem-se" e não "vêm-se". Eles até se podem vir, mas os outros também podem! Cumprimentos.

Pedro Sales disse...

Manuel Martinho,

Ups, a língua portuguesa é mesmo muito traiçoeira. Isto há coisas. Já corrigi, obrigado pela atenção.

Anónimo disse...

Mais um excelente texto. Concordo em absoluto. Deixo apenas uma pequena ideia para reflexão. Em relação ao IVA aplicado sobre produtos culturais seria efectivamente da mais elementar justiça que os discos benificiassem da taxa reduzida desse imposto. Contudo fico algo incomodado com o facto de um disco do Tony Carreira ou do Marante ou outros quaisquer canastrões sejam considerados como produtos culturais. Por muito que me custe creio mesmo que não é possível estabelecer qualquer diferenciação sob pena de podermos cair numa discussão perigosa, mas lá que é tentador... enfim, que seja para todos.