08 agosto, 2007

Geração rasca?

A produção científica em Portugal, medida pelo número de publicações, aumentou 23%, em 2006. Os 7527 artigos e outros escritos dos portugueses, referidos pelo Science Citation Index Expanded (SCI), colocaram, pela primeira vez, o país à frente da Irlanda (7350). Em 1990, Portugal publicava o equivalente apenas a um terço da produção científica irlandesa e 1/10 da espanhola. A distância para Espanha reduziu-se para 1/5, mas deve-se ter em conta que a população é quatro vezes maior.

Deliciosa ironia. Num país em que, há pouco mais de uma década, a taxa de analfabetismo estava nos dois dígitos, não deixa de ser engraçado que seja precisamente a tão vilipendiada geração rasca que o coloque, a tempo inteiro, no circuito europeu de investigação, publicação e divulgação científica. A única coisa rasca, e que não aparece na história, é um número significativo dos autores e investigadores citados faça este trabalho nas mais indignas condições de instabilidade profissional, ausência de direitos e protecção social (a esse propósito, vale a pena consultar o site dos Bolseiros de Investigação Científica).

Mas notícias como estas têm também outra vantagem. Garantem-nos algumas semanas de higiene mental sem ter que aturar a Maria Filomena Mónica, Fátima Bonifácio, António Barreto ou José Manuel Fernandes com a treta do costume sobre a excelência da universidade de antigamente, em detrimento dos madraços que evoluem agora no ensino superior. Numa série de artigos sobre o assunto, que durou várias semanas de arrasadoras críticas nas páginas do Público, José Manuel Fernandes escrevia (a 16 de Agosto de 2004) que "ano após ano os critérios de exigência e rigor vão decaindo perante estudantes que não correspondem e a última coisa que desejam é esforçar-se. Hão-de desenrascar-se, como tantos antes deles, e haverá sempre forma de um dia ganharem a vida pior ou melhor [...] Sem mudar os nossos paradigmas culturais dominantes, de nada servirá dar mais dinheiro à Educação: será dinheiro desperdiçado".

Essa distopia sobre a excelência do ensino de antigamente, leva-nos a um tempo em que os professores, na abertura do ano académico, conheciam os apelidos de todos os alunos, a quem já tinham dado aulas aos pais, tios e primos. A selectividade social garantia a excelência. Mas, seria mesmo excelente? Que investigação científica é que se fazia, então? Que actividade internacional é que tinham os nossos excelsos doutores do antigo regime? Onde é que publicavam as teses? Pois é, agarrar em meia dúzia de nomes famosos e prestigiados, como Nemésio, Lindley Cintra ou Prado Coelho, não nos diz rigorosamente nada sobre a qualidade media de uma universidade que era o espelho de um país atrasado no tempo e fechado sobre si próprio. Aquilo a que chamam excelência, em muitos casos, não passaria no crivo do mais laxista júri de doutoramento actual. Os investigadores nacionais da geração rasca são avaliados como nunca foram os seus predecessores: pelos seus pares internacionais. Excelência é isso, o resto é ideologia de quem parece ficar com problemas de pele com a massificação proporcionada pelo ensino superior público e o fim de uma universidade elitista e de casta.

Como é referido no artigo, nem tudo são boas notícias, sendo principalmente preocupante que “as restrições na concessão de bolsas de investigação vão acarretar uma diminuição da mão-de-obra científica”. Ao contrário da maioria dos países europeus, a investigação científica nacional ainda se encontra muito dependente do investimento público e do envolvimento das universidades do Estado. É que, se a despesa em investigação em desenvolvimento representa 0,8% do PIB, contra os 1,9% da União Europeia, a despesa privada representa apenas 20% da despesa total em I&D, contra os 2/3 europeus. Por isso, quando os suspeitos dos costume disserem que as universidades vivem de costas voltadas para as empresas e a sociedade, vale a pena pensar se são será o contrário, e se, por acaso, não serão os mesmo empresários que se encontram em homilia anual no Convento do Beato, para perorar sobre a falência e ineficácia dos serviços públicos, que não estarão muito virados para essas modernices da inovação e da tecnologia?

3 comments:

JSA disse...

Caro pedro, nem tanto ao mar nem tanto à terra. O aumento da produção científica pouco deverá à educação em si mesma. Deverá essencialmente a um aumento significativo do investimento na ciência em si mesma. É verdade que as condições são aberrantes (sou doutorando numa universidade estrangeira, sem ligações a Portugal, e arrepio-me com as condições de trabalho e financeiras que vejo nos meus colegas a trabalhar em Portugal), mas há substancialmente mais investigadores do que há uns 10 ou 20 anos atrás. É aí que está a grande diferença.

JMF até tem alguma razão perante os critérios de exigência, mas apenas os do secundário. Na universidade continuam os critérios de exigência de sempre e é até esse o problema. Os alunos chegam mal preparados do secundário (falei em parte disso, se me permites o link) e na universidade os professores continuam agarrados à tese que quanto mais alunos chumbarem, mais exigentes e, consequentemente, melhores professores são. Obviamente que os alunos que sobrevivam a péssimos professores om esta lógica de ensino serão óptimos investigadores. Obviamente também que com um aumento do número de investigadores, a produção científica nacional terá de crescer.

Só que, agora, com a redução das verbas europeias (que foi o que sustentou o crescimento no investimento científico), iremos ter menos bolseiros, mais mal pagos e com contratos mais curtos. Voltaremos, portanto, ao passado. A solução passa, como em todo o lado, por aumentar a produção científica privada. Mas isso dá muito trabalho ao estado e os patrões, para não variar, devem achar que isso não leva a nada.

Já a Filomena Mónica ou a Fátima Bonifácio bem podem pregar que é pior que aos peixes. Pessoalmente nem as ouço. Já perderam o contacto com a realidade há muito.

Anónimo disse...

c

Pedro Sales disse...

Caro Jsa,

Claro que estes indicadores só são possíveis com o investimento que o Estado tem feito - com a ajuda de apoios europeus, é certo - na investigação científica. Mas é preciso não esquecer,e eu falo disso, que a maior parte da investigação científica tem lugar nas universidades públicas. Se o ensino superior fosse a desgraça que nos querem fazer crer não era possível ter cada vez mais investigadores com qualidade internacional. Não há investigação científica numa ilha isolada, ela pressupõe a existência de um ambiente e espírito científico que, afinal, parece existir no ensino superior. Pelo menos é o que os números nos indicam. É só isso.